A menina do vestido azul


“Enquanto passa preguiçosamente o tempo com sua irmã, Alice vê o Coelho Branco de colete, carregando um relógio de bolso. Supreendida segue-o até a toca do coelho e cai nele, revelando-lhe a sua longa profundidade como um poço e as suas paredes repletas de prateleiras cheias de objetos estranhos, quadros e de livros. Após uma aterisagem segura num átrio, Alice vê uma pequena mesa de vidro maciço e em cima dela havia uma pequena chave dourada. À procura de fechaduras correspondentes, descobre, atrás de uma cortina, a pequena porta e através desta Alice vê maravilhada um lindo jardim. No entanto, a porta é muito pequena para ela conseguir entrar. Mas devido a uma pequena garrafa com uma etiqueta BEBA-ME, Alice diminui de tamanho ao bebê-la”

Alice no País das Maravilhas, a obra mais célebre do inglês Lewis Caroll conta a história repleta de fantasia de uma menina que cai numa toca de coelho que a transporta para um lugar fantástico e mágico.

Nicole, uma Anapolina de seis anos, não conhece Alice, tampouco viveu em sua época, mas as duas têm em comum além da infância, a vida num mundo incompreensível para a maioria das pessoas. Ela é filha da jornalista Rita Maura Boarin, e desde que a menina completou um ano percebeu que algo estava diferente do desenvolvimento natural das crianças daquela idade.

Desde então, a pequena Nicole entrou na toca do coelho, e depois de uma peregrinação de dois anos, com diagnósticos imprecisos, dúvidas e angústias para tentar entender os motivos que levaram a criança a entrar numa dimensão tão diferente: o mundo do autismo.

Segundo, o Diagnóstico Estatístico dos Transtornos Mentais (DSM), autismo é um tipo transtorno global do desenvolvimento, sem cura, que se manifesta em crianças até os três anos de idade e compromete aspectos físicos, psicológicos e sociais. Trata-se de um desenvolvimento acentuadamente comprometido em termos de interação social e comunicação, além de um repertório comportamental muito restrito de atividades e interesses.

De acordo com o médico psiquiatra César de Moraes, indicadores que o processo de desenvolvimento da criança não vai bem podem ocorrer antes dos seis meses de idade. Crianças que choram demais ou são vistas como muito quietas pelos pais, crianças que têm pouco contato visual, não mantêm posição antecipatória ou não prestam atenção aos eventos familiares principais podem estar apresentando sintomas iniciais da síndrome autista. As alterações no ritmo do desenvolvimento da criança também costumam ocorrer precocemente.

Na maioria das vezes o autismo se manifesta no sexo masculino, fato que de acordo com o mestre em psicologia clínica, Artur Vandré, a ciência desconhece. “Uma hipótese vem de pesquisas feitas no Canadá, no Hospital for Sick Children, em Toronto. Os estudiosos identificaram um gene que pode explicar a maior incidência do autismo entre os meninos. A hipótese é que eles apresentam uma alteração de DNA no cromossomo X.

Foram pesquisados os genes de dois mil indivíduos com autismo e comparados com indivíduos sem a síndrome. Um por cento dos meninos com autismo tinha mutações no gene PTCHD1, encontrado no cromossomo X. As irmãs desses meninos, mesmo com a mesma mutação, não foram afetadas. Isso é possível pela razão de que enquanto os meninos carregam o X das mães e o Y dos pais, naturalmente, as mulheres têm dois cromossomos X. Nesse sentido é como se o cromossomo sadio anulasse o “doente”. Mesmo assim as pesquisas vão continuar, pois não há nada concluído necessariamente”, explica.
Por conta da síndrome se manifestar majoritariamente em pessoas do sexo masculino, fora instituída a cor azul, como símbolo da causa de apoio à inclusão e luta pelos direitos dos autistas.

Direitos estes que são cerceados por falta de informação e desamparo de uma constituição pertinente às pessoas portadoras dessa deficiência, pois, ainda tramita no Senado um projeto de Lei que prevê a inclusão, como proteção contra exploração e acesso a serviços de saúde, à moradia e à assistência social, estendendo o direito à jornada especial ao servidor público que tenha sob seus cuidados cônjuge, filho ou dependente autista, além da possibilidade de ser incluído no sistema regular de ensino.

Ou seja, atualmente, os cerca de dois milhões de autistas no Brasil, não têm os mesmos direitos atribuídos às pessoas com deficiência como, por exemplo, cota de vagas de emprego em empresas com mais de cem funcionários. “Em alguns lugares do país, como Anápolis, o autismo não é tido como deficiência, mas é preciso que as pessoas saibam que eles possuem múltiplos problemas e precisam de um tratamento específico e intensivo, para que possam se desenvolver, com intuito de depois não ficarem pendurados no SUS”, destaca Rita Boarin.

Inclusão e preconceito

Embora, eles não possuam nenhuma característica física que remeta à limitação, como no caso da Síndrome de Down, os autistas têm algumas limitações que muitas vezes são incompreensíveis a um interlocutor desavisado da deficiência dessa criança.
Um autista é muito sensível à luz e ao som, não conseguindo absorver todas as informações que lhe são oferecidas, podendo gerar uma crise, muitas vezes em ambiente público. Rita relata que ao notar uma situação tensa para Nicole, logo lhe oferece a chupeta, pois esta lhe tira o stress e que muitas pessoas não têm receio de criticar o ato pela idade da menina, ou quando uma crise afeta a criança em público, os olhares e comentários maldosos censuram mãe e filha, por julgarem se tratar de uma birra por um mimo qualquer.

A situação se agrava quando o assunto é educação. As escolas de ensino regular são obrigadas a acolher crianças com essa limitação, mas muitas não têm preparo adequado. No caso de Nicole, ela precisou passar por três escolas até se adaptar.
A primeira escola pertencia a uma entidade particular e o maior problema foi a troca repetitiva de professores, pois, o autista, não suporta mudanças repentinas e seu mundo determina uma rotina pré estabelecida.

A segunda escola foi um projeto da rede estadual, em uma classe unicamente de autistas, mas a mãe foi aconselhada a não prosseguir com esse ensino, para que Nicole pudesse se adaptar a um convívio em sociedade e não adquirisse mais maneirismos, ou seja, manias típicas dessa síndrome, como andar na ponta dos pés, movimentos involuntários com as mãos, dentre outros.

A terceira experiência acontece em um CMEI e têm dado certo. Um monitor acompanha o desenvolvimento escolar de Nicole junto com a classe e de acordo com Rita, têm auxiliado para uma inclusão efetiva. Ela conta que ao chegar esses dias na entrada da escola, uma coleguinha abraçou Nicole e a levou de mãos dadas para a classe. “Para uma criança que não brincava e tinha uma grande dificuldade de socialização, atos como esse são uma grande vitória”, comemora.

Um mundo e seus repertórios

O psiquiatra César de Moraes aponta que crianças com autismo mostram, em geral, têm uma melhor performance nas tarefas não verbais e visuoespaciais do que nas tarefas verbais. “Sintomas comportamentais associados à síndrome incluem hiperatividade, curto tempo de atenção, impulsividade, comportamento agressivo, acessos de auto-agressividade e agitação psicomotora”, destaca.

Algumas pessoas com autismo têm respostas extremas aos estímulos sensoriais, tais como hipersensibilidade a luz, som, toque, e fascinação por certos estímulos auditivos ou visuais. Distúrbios do sono e da alimentação também são comuns nessas pessoas, além de medo excessivo em situações corriqueiras ou perda do medo em situações de risco.

Os indivíduos autistas apresentam uma insistência na ‘mesmice’, que se apresenta pelo seu comportamento inflexível e suas rotinas e rituais não funcionais, por exemplo, Rita cita que uma boneca para as demais crianças seria ninada, mas para o autista, a principal diversão seria brincar de abrir e fechar os olhinhos.

Movimentos corporais estereotipados são comuns e apresentam-se sob a forma de "flapping", balanceio da cabeça, movimentos com os dedos, saltos e rodopios. “Essas reações motoras se justificam devido ao desenvolvimento psicomotor ser comprometido em função de algumas áreas cerebrais serem afetas em termos fisiológicos e neurológicos”, explica o psicólogo Artur Vandré.

Mesmo a doença sendo considerada incurável, a esperança de pais como Rita é grande, já que o brasileiro Alysson Muotri, na Universidade da Califórnia, que conseguiu "curar" um neurônio "autista", de um rato em laboratório.

Com a cura ou não, a maior luta atual é pela dignidade e respeito do autista. Por este motivo, comemora-se na próxima segunda-feira (2), o dia deles, onde monumentos do Brasil todo serão iluminados de azul.

Um azul, que possui muito mais que mero croma, e sim um sinal de que a sociedade valoriza o mundo diferente, assim como o da Nicole, a menina que usa um vestido azul.

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