O que a noite da Avenida JK não revela


Em novembro de 2011, um adolescente trouxe a grave denúncia de que em Anápolis existe uma suposta rede de tráfico de travestis advindos do Pará e Maranhão, muitos deles sem ao menos terem completado a maior idade. O menor indicou que havia sido aliciado em sua cidade natal no Pará, com a promessa de remodelar o corpo, através da aplicação de silicone e megahair (procedimento para alongar os cabelos), entre outros atributos.

Porém, ao chegar a Anápolis ele alegou que se deparou com uma realidade totalmente adversa da prometida, adquirindo dívidas que iam desde a passagem à hospedagem em uma casa que abrigava outros travestis.
Em novembro, ele conseguiu fugir e o caso vem sendo investigado por autoridades no Pará e Goiás.

Tal acontecimento levou na tarde da última quarta-feira (4), em uma ação conjunta entre o Grupo Especial de Repressão a Narcóticos (Genarc), Delegacia de Polícia de Apuração de Atos Infracionais (Depai) e Delegacia de Proteção à Criança e Adolescente (DPCA) à prisão de Josiel Paulista Vieira, conhecido como Érica Cafetina e outros 15 travestis foram conduzidos à delegacia.

De acordo com a delegada titular do Depai-Dpca, Kênia Batista Dutra, Josiel é apontado como proprietário da casa que abriga os travestis, supostamente aliciados por ele. “Está comprovado que ele mantém a casa para abrigar os rapazes travestis, com intuito de estimulá-los à prática sexual a fim de obter vantagens com os programas”, destaca.

“Faltou maior apoio das autoridades de Goiás”, destaca delegada responsável pelo caso no Pará

A delegada Christiane Lobato, titular da Divisão de Atendimento ao Adolescente (Data), em Belém no Pará, falou com exclusividade à Folha 670 revelando que desde novembro comunicou a autoridades como Ministério Público, Judiciário, Polícias Federal e Civil de Goiás sobre o caso. “Existe desde novembro a ocorrência de um adolescente tido como desaparecido, que conseguiu fugir, eu pedi apoio em Goiás, mas parece que não houve esforço, nós já tínhamos enviado desde aquela época, o endereço e o nome profissional de Josiel”, enfatiza.

Lobato ressalta que o possível tráfico de pessoas para utilizá-los como travestis em Anápolis é uma situação antiga, assim como o funcionamento da casa, localizada no Bairro Monte Sinai, nas proximidades da Base Aérea. “Não é possível que ninguém nunca tenha visto esse local e ainda mais com essa situação”, desacredita.

A delegada afirma que até hoje não havia um mandado de prisão contra Vieira, no Pará, por falta de materialidade, porém com a chegada do processo decorrente da prisão em Anápolis, a Data também representará por prisão preventiva.


Em busca do corpo, mas sem identidade


Segundo fontes ligadas ao Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico e Pessoas (Netp), em Goiás, travestis adolescentes e adultas são convidadas a “trabalhar”, em Anápolis com a promessa de receberem tratamentos estéticos, como silicone nos seios e glúteos, megahair e aplicação hormonal, que conseqüentemente lhes modelarão, trazendo características femininas e portanto, aumentam os lucros nos programas.

Christiane Lobato afirma que esses procedimentos custam caro para o travesti, uma vez que eles adquirem uma dívida duas vezes maior que o preço cobrado na aplicação, porém, o maior risco está na qualidade e procedência dos materiais estéticos principalmente o silicone.

De acordo com a delegada, na maioria das vezes é aplicado silicone industrial, usado em carros e lubrificação das peças de avião, podendo causar reações alérgicas, fibroses, necrose deformações severas no corpo e dificuldades para andar, além de mortes por infecção generalizada.

Dentro desta perspectiva, na casa onde foi feita a prisão de Josiel foram encontradas agulhas, que de acordo com os travestis, eram utilizadas para aplicação de silicone industrial.

Fatos como esse, ainda são denunciados por Lobato. “Mesmo com as consequências do uso desse produto, os travestis são obrigados a irem para a rua, elas são seduzidas pela mudança de corpo, mas a realidade é outra e se ao implantarem silicone industrial ficarem doentes, mesmo assim precisam trabalhar”, enfoca.

Senzalas invisíveis do século XXI

As autoridades em defesa das pessoas traficadas são unânimes, que o tráfico de mulheres (como já mostramos na edição 10) e travestis possui as mesmas características desde a abordagem, até nas práticas que mantém o explorado ligado ao explorador.

Essas mesmas autoridades revelam que as quadrilhas são perigosas, violentas, além de estarem livres na sociedade e envolvidas infimamente com outras contravenções como tráfico de drogas, armas, menores e mulheres, o que lhes leva a crer que possuem proteção de indivíduos influentes.
A delegada Christiane Lobato revela
que existe uma estrutura de vigilância diária e um esquema de escravidão por dívida, ou seja, ao chegar, o aliciado descobre que precisa ressarcir o cafetão, na passagem, despesas de moradia, alimentação, procedimentos estéticos e porcentagem dos programas, vivendo em regime de escravidão até quitar suas dívidas.

E da mesma forma como ocorre no tráfico de mulheres, os aliciadores de base, ou seja, aqueles que abordam os travestis com as propostas de mudanças de vida, corpo e condição monetária, são indivíduos de seu convívio. “As vítimas nunca vão assumir sua condição e denunciar, pois os aliciadores são pessoas que de alguma forma possuem algum vínculo, sabem onde elas moram e fazem ameaças”, explica a delegada.

Imputações

Josiel Paulista Vieira, responderá pelos crimes inafiançáveis de favorecimento à prostituição e rufianismo, que consiste na prática do agente tirar proveito da prostituição alheia, participando diretamente de seus lucros ou fazendo-se sustentar por qualquer pessoa, homem ou mulher, que exerça a prostituição, podendo ser condenado por até cinco anos de reclusão.

Os 15 travestis apreendidos serão ouvidos, terão antecedentes criminais pesquisados e posteriormente liberados. Embora no momento da abordagem não tenha sido encontrado nenhum menor, o próprio Vieira, confessou que em outras ocasiões a casa já recebeu as possíveis vítimas.

De acordo com a delegada Kênia Batista Dutra, a investigação que acontece no Pará, por tráfico de seres humanos pode influenciar em outras acusações em Anápolis, e que ela aguarda a documentação de Belém.

ONU alerta que 2,4 milhões de pessoas no mundo são vítimas de tráfico humano

Na última terça-feira (3), o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (Unodc) informou que cerca de 2,4 milhões de pessoas no mundo foram vítimas de tráfico de seres humanos pelo menos uma vez.

O diretor executivo do Unodc, Yuri Fedotov, disse que em 17% dos casos as pessoas são submetidas a trabalhos forçados. De acordo com ele, uma em cada 100 vítimas do tráfico é resgatada. Ele apelou à comunidade internacional para que sejam tomadas medidas a fim de conter o avanço do tráfico de pessoas.

0 comentários: