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Mulheres marcadas



A auxiliar de serviços gerais, Isailda Rezende de Carvalho comemoraria nesta quinta-feira (8), o 46° dia das mulheres. Receberia o abraço dos filhos, amigos e do companheiro, Sandoval de Jesus, mas foi impedida.


O dia 26 de fevereiro parecia mais um domingo normal na rotina de Isailda, exceto por mais uma das brigas com o companheiro, que após passar o dia no bar, a executou de forma cruel, brutal e covarde. Ela morreu de forma instantânea, por consequência das dezenas golpes de faca que perfuraram todo o corpo.


Isailda não é a única, dados da Central de Atendimento à Mulher da Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM) de 2011 registraram que foram realizados em 2009, 401.729 atendimentos denunciando agressões contra a mulher. Em 2010 este número foi 734.416 atendimentos, aumento de 82,8%. De abril de 2006 a dezembro de 2010 foram 1.658.294 atendimentos.


Dos 734.416 registros ocorridos em 2010, 108.026 dizem respeito a relatos de violência, 63.831 referem-se à violência física, 27.433 à violência psicológica, 12.605 à violência moral, 1.839 à violência patrimonial, 2.318 à violência sexual, 447 a cárcere privado, e 73 a tráfico de mulheres. De acordo com os atendimentos, 58,1% das vítimas são agredidas diariamente, 38% relatam sofrer violência desde o início da relação, 71,5% das vítimas moram com o agressor, 65,5% convivem com seu algoz há mais de dez anos, e 51,3% dos casos, a mulher diz correr risco de morte, como no caso de Isailda. Os dados relatam ainda que os filhos presenciam ou sofrem violência junto com a mãe em 84,2% das situações.


Em briga de marido e mulher...


Casos como o da auxiliar de serviços gerais, podem ser explicados através de uma pesquisa inédita sobre violência contra a mulher promovida pelo Instituto Patrícia Galvão revelando que, embora a violência seja abominada por cerca de 90% da população, o velho ditado “em briga de marido e mulher não se mete a colher” ainda tem boa aceitação de 66%.


Porém, uma decisão tomada no dia 9 de fevereiro, pelo Supremo Tribunal Federal (STF) torna mais complicada a situação dos homens que agridem as mulheres no ambiente doméstico. Ao analisarem a Lei Maria da Penha, os ministros do STF concluíram que a abertura de ação criminal contra o responsável pela lesão corporal não está mais condicionada a uma representação da vítima. Ou seja, o processo poderá ser aberto mesmo se a mulher não prestar queixa.


Para a titular da Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (DEAM), Aline Vilela, esta decisão do STF, vem quebrar um tabu. “Nosso país é de uma cultura patriarcal e várias pessoas querem reprivatizar a violência doméstica, afirmam que nem o Judiciário, a polícia, ninguém pode entrar nesse mérito, pois este é um âmbito do casal em quatro paredes. Essa é uma cultura persistente por longos anos, e que 9 de fevereiro foi um marco, e o STF disse totalmente ao contrário, em briga de marido e mulher, o Estado vai meter a colher, sim”, enfatiza.


A delegada explica que antigamente os crimes de lesão corporal leve dependiam de uma representação da vítima, ou seja, ela precisava ir à delegacia, noticiava o fato em um boletim de ocorrência e assinava um termo de representação, que é a manifestação de vontade para que o agressor fosse processado. Atualmente não é mais preciso a representação da vítima, e se houver a notícia de que alguma mulher está lesionada, o Estado pode agir, através de uma denúncia do Ministério Público (MP), além de que na fase judicial, a agredida não terá o poder de retirar a representação assinada anteriormente.


Marcadas pelo passado


Nair (84) é mãe de quatro filhos e durante 15 anos sofreu calada toda espécie de agressões por parte do marido. Em meados da década de 50 e 60, uma época onde o divórcio era considerado abandono do lar (somente em 1977, o Estado reconheceu essa legitimidade), ela respirava violência. Era xingada por toda espécie de nomes de baixo calão, chegou ser ameaçada com arma de fogo, porém, o mais comum era apanhar com o sapato de salto, aquele que usava nos eventos da “sociedade”, para tornar-se uma mulher elegante e dona de casa realizada.


As agressões eram cada dia piores, levando o juiz e o bispo da cidade onde morava, reconhecerem a gravidade da situação, dando-lhe uma carta de legitimação da separação do casal. Mesmo com esse reconhecimento de liberdade e do divórcio oficial anos depois, até a morte do ex-marido em 2009, Nair preferiu não retirar o sobrenome do agressor de seus documentos de identidade.Atualmente, a mentalidade da população tem mudado.


De acordo com uma pesquisa realizada pelo Ibope, a idéia de que a mulher deve aguentar agressões em nome da estabilidade familiar é claramente rejeitada pelos entrevistados (86%), assim como o chavão em relação ao agressor: “ele bate, mas ruim com ele, pior sem ele”, que é rejeitado por 80% dos entrevistados.


Com relação ao chavão conformista “ele bate, mas ruim com ele, pior sem ele”, há diferenças significativas e culturalmente relevantes: as mulheres (83%) tendem a rejeitar mais do que os homens (76%); os mais jovens (83%), mais do que os mais velhos (68%).


O direito de reviver


Há duas semanas, uma mulher se recuperava de um procedimento cirúrgico que retirou o seu útero, os filhos estavam na escola e ela estava sozinha em casa. O ex-marido aproveitou a ocasião de fragilidade, entrou na residência sedou a ex-companheira, e de forma cruel, a violentou, arrebentado todos os pontos da barriga.


De acordo com a delegada Aline Vilela, episódios como esse são recorrentes em Anápolis, além dos casos de tentativa de homicídio, lesão corporal grave, como substâncias jogadas nos olhos com intuito de cegar, porém, os casos preponderantes são os crimes contra a honra e ameaça.


Mulheres que têm sua dignidade violada precisam de auxílio para retomar a vida. Trabalhos realizados, como os da ONG, “Radassa” e ações da Diretoria de Políticas Públicas para as Mulheres, transformam realidades pisoteadas, dando-lhes um novo sentido.


De acordo com a diretoria de Políticas Públicas para as Mulheres, Erondina de Moraes, o trabalho realizado, vem atender ao clamor da mulher violentada e agredida, que não tinha um lugar onde reclamar. “Na delegacia ela registra a ocorrência, ela vê seu algoz ser processado ou não, mas não tinha um respaldo pra isso. No nosso espaço, ela tem a garantia de atendimento social, jurídico, apoio psicológico, além de ter um abrigo para si e seus filhos”, destaca.


Por anos, a luta contra a violência doméstica foi considerada impossível e as mulheres condenadas, a viver sob a escravidão de um algoz. Porém, como em todo processo histórico, a bandeira do respeito e igualdade vem sendo erguida.


As mulheres cada vez mais se conscientizam que violência não é sinal de amor excessivo e não se contentam em viver mediante à tristeza e o abandono. Elas vivem o poema de Adélia Prado, “minha tristeza não tem pedigree, mas a vontade de alegria tem uma raiz que vai até o meu mil avô”.

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